segunda-feira, 19 de setembro de 2011

A Flâneur, Julianna Merat, José Bechara e Gaston Bachelard Num Quarto de Hospital.






Dentre as muitas coisas da vida que não entendo e creio não ser por falta de vida vivida, uma delas é a certeza. Não entendo de que serve tê-la ou contestá-la, não entendo a valia desta propriedade imaterial.



A última frase que a charmosa mulher de olhos piedosos disse foi algo sobre as sequelas. Ao que parecia, eu não recuperaria parte de meu paladar responsável por identificar o doce. Pensei comigo que era uma troca muito justa, ja que meu corpo continuaria a decodificar serotonina.







Quando ela saiu, todos os presentes (meus pais e irmãos) tentaram me alegrar dizendo que ainda assim era apenas uma hipótese. Meu cérebro mal os acompanhava. Imaginei que eu deveria ser uma pessoa extremamente desagradável, além de alcoólatra e fumante compulsiva, pois enquanto todos a minha volta transbordavam amor e palavras de incentivo eu apenas sentia uma profunda irritação (que apenas meu irmão percebeu e o fez calar-se imediatamente - isso não havia mudado, ele ainda me conhecia fundo), e uma vontade quase incontrolável de cigarros e cerveja. O gosto de ambos me fez cócegas na garganta, e as cócegas me fizeram pensar então que talvez fosse possível acordar de um coma e ainda ser a mesma pessoa. Ou algo próximo disso.






Mas haviam questões mais importantes em jogo ali, como o fato de eu não conseguir diferenciar idiomas, o que fazia com que a comunicação fosse quase impossível, já que eu misturava várias línguas na construção de uma frase. Ou a comicidade imersa em não saber distiguir o que era real e o que era minha mente incontrolável. Eram frequentes frases do tipo "isso nunca aconteceu" ou "fulano eh um personagem", ou ainda "você nunca esteve em tal lugar". Cheguei ao absurdo de ouvir: "você não pode ter uma magnum embaixo do banco do maverick simplesmente porque você não tem um maverick. Nem uma magnum, que eu saiba". Mas eu me lembrava dela estar la. A voz grave e preocupada de meu pai me trouxe de volta de minhas divagações. Ele dizia que iriam dar uma volta, pois estava na cara que eu queria ficar um pouco sozinha. De brincadeira, pedi que me trouxesse um maço de lucky strikes e cerveja, ao que ele perguntou: qual? E eu como que por instinto respondi: dos vermelhos..., e uma heineken. Ele sorriu um sorriso iluminado, como um professor ao ouvir uma resposta brilhante de seu pupilo. Vi que havia algo de mim aqui ainda. Segundos depois ele rosnou para mim algo sobre "vergonha na cara e respeito a vida". Recebi um beijo de cada um, e enfim me deixaram.






Tive medo de minha própria companhia. Agora eu estava sozinha com minhas memórias, ou o que me restara de seus retalhos.






(em construção)


Também não entendo memórias, saudades e amor. Mas isso já são outros 500 ininteligíveis, ainda mais pra quem apenas acordou de um coma. 

2 comentários:

  1. Muito perto, muito perto, quase no zênite. Que texto saboroso, que técnica narrativa, que cativante uma primeira frase que é uma última frase. Muito perto, muito perto da tua companhia. Belo texto, pura vergonha na cara e respeito à vida. Muito perto, muito perto de uma gargalhada cruel à la Tarantino, no episódio da magnum no maverick. Muito perto, muito perto de chegar a muito longe. Esse texto tá de dar inveja.

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  2. Muito perto, muito perto de um delírio. Muito perto, muito perto da loucura once more. Muito perto, muito perto do irreversível. Obrigada querido, sempre babo em teus comentários.

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