segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Sobre Cigarros, Piratas e Angela Ro Ro

Lendo Caio Fernando, acendeu um cigarro. Andava fumando muito ultimamente. Compulsivamente diria. Acendia cigarros por memória muscular, e os fumava pelos R$ 3,75 pagos por cada maço. A Lua Cheia fazia cócegas em seus cabelos. Os pensamentos cruzavam seu crânio de forma caótica, desordenada, como abelhas em uma colméia arrancada de seu nicho e sacudida freneticamente por algum pirralho sem respeito nenhum por outras formas de vida que não a humana. E além de toda aquela confusão dentro dela, ainda ouvia muitas vozes a falar ao mesmo, caboclos bradando e música clássica. Música clássica ao fundo misturada assobios. E tinha a Lua Cheia. Estava lendo “Os Sobreviventes”, cuja instrução pré-leitura (sim, isso mesmo, instrução pré-leitura) sugeria que este fosse lido ao som de Ângela Ro Ro. Rui-se ao pensar que o mais próximo de Ângela Ro Ro que havia naquele momento era sua amiga Silvia cantando, a qual coincidentemente havia emprestado-lhe tal livro e a qual encontrava-se trabalhando naquele instante e permaneceria assim pelos próximos. Pensou que talvez não fosse uma boa hora para pedir que ela cantasse uma música. Muito menos Ângela Ro Ro. Não se pede que cante Ângela Ro Ro assim sem um prévio motivo. Sem um motivo plausível. E seguir as instruções de um conto aleatório de um livro velho de um autor defunto não era motivo plausível para cantar Ângela Ro Ro em meio a música clássica, caboclos bradando e gente falando. Se eu acaso fosse cantar Ângela Ro Ro em meio a essas condições, esse certamente não seria um motivo. As abelhas ferroavam seu cérebro de dentro para fora. Pensou nunca ter estado tão perto de um aneurisma quanto naquele momento. Apagou o cigarro ainda distraída com tanto de tudo a sua volta. Percebeu que iria queimar o dedo com a brasa do findo cigarro. Queimou. Viu então que seus neurônios levaram segundos para transmitir aquela informação a seu cérebro e este levou mais algum tempo para retransmitir ao seu dedo já queimado. Só então sentiu a dor da queimadura. Ela sabia que queimaria o dedo e que obviamente sentiria dor. (Agora ao tumulto adicionam-se tambores. Quatro.) Acendeu outro cigarro. Pensou em seu último malfadado romance. Ela sabia, com plena consciência, que se foderia em algum momento. Ou em todos. Ela seguiu. Se fodeu obviamente, como previra. Sabia que não tardaria até a dor vir. A dor veio. Curou-se da dor, agora resta uma bolha amorfa, cheia daquilo que ela sentia guardado, bem guardado, escudado pela dor. Pensou no Poeta-Pirata. Pensou que talvez agora doa em algum outro lugar.

Apagou o cigarro.

Queimou o outro dedo.

Alguns segundos até começar a doer.

Começou a doer.

É, talvez doa em algum outro lugar agora.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Amo essa imagem... a tenho a muitos anos. Sempre vejo a colombina em êxtase, como se do outro lado da câmera estivesse um anjo... ou o amor.

O Dia Em Que Amei O Poeta - Parte III

Acordara ofegante. Desorientada. Ainda onírica, estendeu a mão em direção ao parapeito da janela. A posição conferia. Como imaginou, seus cigarros estavam ali como era de costume deixá-los toda noite. Acendeu um, aproveitou a claridade causada pelo fogo do isqueiro para checar mais uma vez o ambiente, afinal, poderia estar em qualquer outro lugar onde a cama ficasse abaixo da janela e seu parapeito fosse facilmente alcançado por seu braço esquerdo. Uma prateleira a sua frente, livros por todos os lados. Seus desenhos e escritos por todo o lugar. Fotos espalhadas pelo chão, em meio a roupas e outros cheiros. A janela aberta como de costume. Noite fresca. No segundo que se seguiu foi tomada por uma onda de imagens que formavam um mosaico. Um bar. Cenário noir, damas, dálias e cavalheiros que cortejavam ambos os tipos, além da própria loucura. Um pirata cruzava o salão em sua direção no mesmo instante em que ela avistou dois amigos. Preferiu não chamá-los, teve medo de desfazer aquele belo quadro e afugentar o pirata. Lindo. Cadência de malandro no andar. Espáduas largas, emolduradas por blazer bem cortado sobre camisa branca de gola V. Suas belas clavículas a mostra. Bigodes de cantor de rádio. Trazia no pescoço guias de seus Guias. Nos pulsos e dedos mais amuletos. Pimenta. Temporal. Ventania. Caos. Ela tragou, pra tentar organizar as ideias. Enquanto repassava mentalmente as imagens, olhou de forma distraída a sua volta. A realidade caiu sobre ela com um baque surdo. O Poeta, o Pirata, aquele Vulto ruivo a fitava de tão perto que podia sentir seu hálito de mel e limão a dar-lhe água na boca. Ele, de forma muito natural pegou o cigarro de suas mãos, deu um trago e puxou-a para si, aninhando-a em seu peito. Suas sensações responderam àquilo como se já conhecesse o relevo daquele outro corpo. O encaixe era hermético. De forma quase automática, ela beijou o canto de sua boca e roçou seu rosto naquela barba áspera. O Poeta riu-se gostosamente. Ela então, percebendo a provocação, mordiscou-lhe o lóbulo da orelha, pescoço e peito. A mão do Poeta, que pousava em seus cabelos, desceu devagar e cuidadosa por suas costas, cintura, quadris, barriga; e subiu novamente em direção aos seus seios, de forma gentil. Ela tomou seu cigarro de volta, agora já quente, assim como a atmosfera do quarto. O Poeta abriu então o laço que seus braços formavam a sua volta e deitou-a na cama, forçando todo seu peso contra aquele frágil corpo. Ela arfou, mas não foi de dor ou cansaço. Foi por tudo o que aquele corpo sobre o dela a proporcionava. Ele beijou seus seios de forma tesa e carinhosa, enquanto de simultâneo subia por seu colo e pescoço. O atrito daquela barba cerrada contra sua pela macia fazia eriçar todos os pelos de seu corpo. Ele chegou ao seu ouvido, e sussurrou “_Ela entrou como um pássaro no museu de memórias/ E no mosaico em preto e branco pôs-se a brincar de dança.” Ela fez menção de continuar, era seu poema favorito. Ele percebendo, cobriu-lhe a boca com um beijo apaixonado e continuou, com seus lábios roçando de leve nos dela: “_Não soube se era um anjo, seus braços magros/ Eram muito brancos para serem asas, mas voava./ Tinha cabelos inesquecíveis, assim como um nicho barroco/ Onde repousasse uma face de santa de talha inacabada.” Ela ofegou, sentindo todo o peso de uma vida vivida longe daquele Poeta. Sentiu a saudade de todos os anos sem aquele corpo a condenar-lhe a sanidade. Questionou a razão antes daquela outra alma. Houve razão? Houve algum dia antes daquele? Ele, como se em reposta a todas aquelas dúvidas, beijou –a mais uma vez, porém agora de forma urgente. “_Seus olhos pesavam-lhe, mas não era modéstia/ Era medo de ser amada; vinha de preto/ A boca como uma marca do beijo na face pálida.” Ela então calou a voz com dois dedos sobre os lábios do Poeta, e terminou: “_Reclinado; nem tive tempo de a achar bela, já a amava.” Ele então falou em seu ouvido:



_És uma pimenta...

O Dia Em Que Amei O Poeta - II

Despretensiosa. Essa palavra descrevia com alguma precisão (talvez entre o relógio analógico e a clepsidra) como ela acordara naquele dia. Os últimos dias haviam sido por demais confusos, e em certa feita perdeu-se na ordem cronológica dos fatos e não só isso. Começou a confundir também suas memórias. Depois de tantos anos exilada em seu salão de espelhos, era difícil distinguir a realidade das fantasias. Talvez por seus devaneios serem tão mais interessantes e sua realidade proporcionalmente entediante. Porém essa questão nunca havia sido um problema para ela, já que inventadas ou não, suas memórias exerciam seus papéis com excelência: a permitiam sentimentos. Nunca havia sido um problema a origem deles. Até agora. Uma enorme saudade a corroia o peito, apertava-lhe as entranhas. Ela buscava em seus arquivos mentais alguma dor parecida com aquela. Com aquele câncer. Nada. Buscava então a origem daquele sentimento. Encontrou uma cena. O calçadão da praia de Icaraí, uma tempestade se iniciando. Seu vestido marfim de flores rosa-chá encharcado, seu cabelo chicoteando contra seus lábios e bochechas. Risadas. Sua amiga ruiva recitando-lhe Libélula Rubra com os cabelos também esvoaçantes, porém seca. Salpicos frescos de água do mar em seu rosto, um vulto ruivo ao longe, também entre risadas. Pimenta. Sua mão em um rosto. Um toque quente em seu colo. Aquele rosto, o poeta, sua barba ruiva por fazer, suas clavículas. O andar cadenciado, o paletó e o chapéu. Suas guias pendendo de seu pescoço. Lembrou de um beijo que escorreu por sua boca, pescoço e seios. Viu seu vestido amassado no chão, uma mão cheia de anéis percorrendo cuidadosamente sua cintura, barriga, quadris. Um arrepio seguiu essa lembrança. A dor fez piorar. Chegou à origem da dela. Saudades do poeta. Então surgiu a dúvida. Como tanta dor, tanto caos, se nada daquilo era real? Ela estava certa de que aquela memória ela havia criado. Se lembra de ter esquadrinhado cada canto de sua arquitetura, atado cada ponta dos acontecimentos. Mas o toque era tão real. O cheiro, ela se lembrava do cheiro. Se lembrava da urgência daquele toque, da vontade por aquele gosto. Aquilo tudo não poderia ser fantasia. Porém não havia nenhum indício, nenhuma prova de que ela havia vivido aquelas sensações. Se era de fato amor, seria mesmo possível amar uma memória plantada por ela própria? E sentir falta de algo que não foi vivido? E amar alguém, amar o toque de um fantasma? Então, ainda com toda essa tempestade rugindo dentro dela, saiu, despretensiosa, porta afora. Também, quais pretensões são possíveis em uma segunda-feira? De forma inconsciente, aportou em um bar de frente para um mar. Havia certo tumulto ali. Pessoas lindas, todas sorriam para ela um sorriso sincero, um sorriso com o olhar. Era uma espécie de boas vindas silencioso. Dirigiu-se ao balcão, sentou-se. Um ponto privilegiado para admirar aquela bela confusão, ela pensou. Avistou dois bons amigos, mas estavam tão bem integrados aquele caos, e tão felizes por fazer parte dele e tão lindos em meio a tudo aquilo, que teve medo de chamá-los e então mudar tão belo quadro. De repente entre risadas, um homem se aproxima. Andar cadenciado, a elegância conhecida. Cabelos ruivos e bem cortados, bigodes de cantor de rádio. Trazia no pescoço guias de seus Guias, escapulários do santo padroeiro, correntinha que a vó deu de presente aos 7 anos e um crucifixo que ganhou de um franciscano com quem cruzou há longos anos. Nos pulsos e dedos mais amuletos. Paletó bem cortado, camisa de gola V. Beleza de pirata. Percebeu algum dejavú nisso tudo, mas estava excitada demais com o momento para determinar onde ele jazia. O poeta parou diante dela, tomou sua mão, beijou-a de forma terna e tesa. O cheiro, o toque, o beijo, a barba, a declarações trocadas, a urgência. O dejavú. Tudo em um turbilhão envolveu-a. Envolveu o ambiente. Ela olhou a volta, procurando desesperadamente por qualquer sinal de que aquilo era real. Pavor. Como determinar a realidade? Como não se perder em um sonho? Como saber de que lado do espelho ela se encontrava? Em meio a todas aquelas perguntas uma voz grave e rouca irrompeu seus devaneios.

_ Você.Julianna Merat! Estava ansioso por lhe ver chegar. Ansioso por nossa conversa. Acabou que depois de todas as mensagens trocadas, agora também acompanho seu trabalho de longe.

_ Nossa. Paulo. É um prazer conhecê-lo, finalmente. Estranho como todas essas mídias sociais confundem a realidade, não é? Também estava ansiosa por encontrá-lo, por nossa noite...


_ Sabes que todo poeta necessita de uma cronista ao lado?


_ Não, nunca ouvi nada parecido. E por qual motivo?


_ Para que este possa destilar o amor e a paixão de forma coerente. Sabe como é...Poetas...


_ Pois talvez então por esse motivo eu não goste de qualquer poeta.


_ Então eu seria todos os poetas do mundo para você.


_Você já contem todos os poetas do mundo... Sabes q toda cronista precisa de um poeta ao lado?


_ Não, por qual motivo?

_ Para ensinar-lhe a falta de vergonhas...







quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Libélula Rubra ou O Dia Em Que Amei o Poeta

O dia era branco, e como todo dia branco, sem grandes pretensões. Ameaçava chover sobre as flores rosa-chá do seu vestido. A ventania emaranhava seus cabelos e levantava folhas e revoltava o mar. Depois de ter percorrido aqueles lugares aonde frequentemente ia à busca de amores, poesias, novidades ou ela mesma e não encontrar nada parecido com nenhuma dessas coisas, decidiu voltar a pé, e talvez ir andando até... Talvez até Paquetá. Talvez até Passárgada. Qualquer um daqueles destinos era longe demais da praia de Icaraí, ode ela se encontrava (ou se perdia), e então tinha pouca pressa. A chuva começou a chicotear seu rosto, colo e pernas, então a pouca pressa tornou-se nenhuma. Decidiu apoiar-se sobre a grade de contorno do calçadão, sentindo a chuva, o mar e o vento, tudo aquilo ao mesmo tempo. Respirou bem fundo, até seus pulmões doerem, tentando trazer aquela tempestade para dentro de si, e quem sabe assim limpar sua alma. Lembrou-se de um antigo poema chinês que sua amiga ruiva recitou-lhe um dia. Ele fez cócegas em seu cérebro, e ela riu-se da sensação e dos pensamentos que se seguiram. Percebeu então, entre risadas solitárias, que era observada de longe. Um belo homem se aproximava dela, também entre risadas. Pele clara, claríssima. Cabelos ruivos e bem cortados, bigodes de cantor de rádio. Trazia no pescoço guias de seus Guias, escapulários do santo padroeiro, correntinha que a vó deu de presente aos 7 anos e um crucifixo que ganhou de um franciscano com quem cruzou há longos anos. Nos pulsos e dedos mais amuletos. Tinha a elegância de um malandro que caminha seguro de tudo por arcos e bares. E desfilava toda aquela elegância em sua direção em um terno preto com camisa branca de gola V, que deixava a mostra suas belas clavículas salpicadas por pelos ruivos. E mais uma vez o poema ressoou. “Libélula Rubra/ Se tirar-lhe as asas/ És uma pimenta”. Ele chegou mais perto. “Não sei, moça, se és um anjo... Seus braços são por demais brancos para serem asas... Mas estou certo de que a vi voar”, disse ele já perto o suficiente para que ela sentisse seu hálito morno a acariciar-lhe a face. “Então já me amas? Nossa, quão ansiosa eu estava! Demorou tanto tempo... tempo demais. O suficiente para eu errar”, ela prontamente respondeu-lhe, apesar de embevecida com sua beleza de pirata. Ele sorriu confuso, inclinando a cabeça enquanto ela se explicava mentalmente: claro que lhe aguardava! Se você já me ama, era você que eu tanto esperava! Enquanto pensava em como explicar que tudo aquilo que acontecia era culpa da tempestade que ela havia inspirado, tocoui seu rosto instintivamente. Ele fechou os olhos. Sorriu um sorriso mais largo. Pousou sua mão sobre a dela. Abriu os olhos e perguntou por que o havia tocado. Respondeu trazendo sua mão para o seu colo, e fechou os olhos sorrindo ao sentir tal toque. “tão macia...” ele disse ao sorrir mais. Ela então disse-lhe : “Gosto de gente, gosto de pessoas. Gosto de senti-las. Mas gosto de você, poeta, por motivo diferente.”

_ Que motivo então seria esse?
_ Eu te amo. Esse é o motivo. Ele sorriu mais uma vez, agora também com os olhos. _ Não vai perguntar como é possível amar algo que jamais vira? Algo que mal sabia que existia?

_ Não. Simplesmente porque já não suportaria a realidade se não fosse amado por você.

Beijou o canto de seus lábios, e depois seus olhos, ao que ele retribuiu com alguma violência até, tamanha era sua ânsia por sua boca e todo o resto.

_ Libélula Rubra, que ainda é libélula, me devolveu as asas...

_ És uma pimenta...