quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Succubus

Olho-me no espelho, me suprime o ar o que vejo de volta. Pura crueldade da enorme ironia contida na capacidade dele de refletir única e exclusivamente a verdade, tanto profunda quanto aquela que paira na superfície. Ele, sádico e sarcástico que só, com sua acidez que lhe é peculiar, mostra-me sempre além do que estou disposta a ver. Ele mostra-me sempre nua, com todo o negro que povoa minha mente transcendendo a surrealidade e contornando-me os olhos, escorrendo pela pele alva do meu rosto, manchando toda a brancura angelical que serve de mimetismo. Mostra-me o carmim borrado de meus lábios, transbordantes de luxúria de carmim igual. Mostra-me os olhos cor-de-mel que gritam desconsoladamente implorando pelo perdão daqueles que já magoou e gritam também irados, em sua vã tentativa de afugentar possíveis novas vítimas. Mostra-me a vasta extensão de generosas curvas e atraente relevo, inteiramente coberta por alvíssima e macia tez, que esconde dos menos atentos toda sorte de pecados já consumados, e tantos outros que ainda estão por vir. E ainda não satisfeito com as feridas que acabara de abrir e salgar, mostra-me tristeza, ira, ódio, tanto desamor, desprezo meu por mim, e deles por mim, e meu por eles.

        O Sol começa a tingir a cidade de vermelho, a raposa começa a me espreitar uma vez mais. É hora de recomeçar a caçada, a lua já me espera ardendo sobre a pele. Ela uiva em meus ouvidos, inquieta, sedenta por novas memórias, se contorcendo por novas presas. Não tenho forças pra lutar, nada mais exaustivo para uma pecadora que tentar resistir a um demônio. Não tive sequer o sopro necessário, e me negado o respiro me foi imposto o sufoco de saciá-la. Uma vez baixada a guarda, não há mais como fugir de tamanha ferocidade. Tudo nela foi cuidadosamente preparado para atraí-los, encantá-los, enfeitiçá-los. E ela não poupa ninguém, nunca, pois sua sede não tem fim. Ela não sente nenhuma piedade, e faz questão de mostrar o amor a cada um deles, pois a dor de quem morre por amor é das mais saborosas. E aqueles os quais ela não consegue tirar a vida, somente plantar ódio, também são úteis pois ela se alimenta de ira e de qualquer outro sentimento baixo e denso.

        Agora a lua já no alto me transforma em mera espectadora. Ela, a raposa, assume total controle e volta ao espelho. Recuso-me a olhar, mas seu passatempo favorito é me torturar (coisa que ela faz com tal admirável maestria). Ela me força a vê-la, e eu quase consigo admirá-la. Ela consegue ser sempre irresistível, a qualquer um. Sua pele exala o perfume que mais agradar à presa escolhida. Seus olhos estão em constante mutação, possuem as mais belas cores jamais vistas em outros olhos.