quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Uma Dose, Apenas Uma Dose.


Saíra apressada de casa. A noite havia sido péssima, pesadelos com borboletas por toda a madrugada. Borboletas e folhas em branco. O escritório e suas paredes amarelas e estéreis andava apavorando-a ultimamente.

Tic tac tic tac tic tac "Acorda amor/ que eu tive um pesadelo agora/ sonhei que eram os homens lá fora/ fazendo confusão, que aflição! " tic tac tic tac. Seu despertador, Chico, infalível como sempre. Eram 5:11. Olhou ao seu redor e o que viu a atingiu sem piedade. Eles haviam conseguido. Imediatamente percebeu que os pesadelos haviam sido todos induzidos, todos, todos, todos, óbvio.  Sempre desconfiara daquela luz vermelha piscante e incessante do seu aparelho celular que a empresa havia lhe dado . Tava na cara que estavam rastreando-a desde o principio. E agora, com as paredes da sala de sua própria casa pintadas naquele mesmo amarelo estéril... Eles haviam chegado, nada mais poderia ser feito.

Não havia ninguém em casa, seu irmão, seus pais, nem mesmo seus cachorros. Haviam sequestrado todos.

Não pensou duas vezes, pegou sua bolsa, vestiu-se como se fosse trabalhar (afinal poderiam haver espiões infiltrados entre seus vizinhos. Agentes duplos talvez. Ra! Aquela gorda da casa ao lado, sempre solícita, sempre com um bom conselho nos lábios seguido por um sorriso bonachão. Ela era a agente dupla.), e se encaminhou até o orelhão da próxima rua. Ao chegar percebeu a burrice que estava prestes a cometer. Se ligasse daquele telefone, estaria muito claro que ela seria a interlocultora, assim que rastreassem o numero. Entrou em um ônibus rumo ao centro da cidade e dele livrou-se do telefone celular-chip-rastreador. Aquilo não os impediria, mas daria algum trabalho.

Do terminal rodoviário, centro da cidade, ligou para aquele que ela tinha absoluta certeza ser o mandante de todo o esquema: o colombiano. Ao atender no primeiro toque, ela disse "poupe seu espanhol, eu já sei de tudo e estou a caminho de sua casa agora." Ele blefou. Ela insistiu e jogou mais pesado dando o endereço de onde morava, o nome completo da esposa e dos filhos, até o da domestica. Ele cedeu. "O que queres esta no escritório”. Ela ameaçou. "Não estou agindo sozinha, então é bom mesmo que esteja, e que você esteja lá."

Chegando lá, carros de policia cercavam o prédio, a rua parecia um formigueiro. Uma espessa calda vermelho vivo escorria em direção ao bueiro. Então viu uma massa de carne enorme e amorfa de onde se originava o riacho vermelho vivo. Era o colombiano, havia se jogado do 21º  andar, da janela de sua sala no escritório. Sua chefe, uma senhora doce de seus 5O anos veio correndo em sua direção. "Eu não sei o houve! Não sei como aconteceu! Eu entrei em sua sala, ele estava ao telefone, então eu voltei pra minha mesa! De repente, passados alguns minutos com o telefone dele tocando sem parar, fui a sua sala mais uma vez e ele não estava la e a janela estava fechada e havia o bilhete no teclado do computador..." E desabou a chorar em seus braços. Nesse mesmo instante, toca o celular pessoal. Seu irmão, ligando do aparelho de seu pai, dizendo que estavam saindo do hospital naquele instante e que não haveria a necessidade de cirurgia, apenas o tratamento com remédios que as crises cardíacas seriam controladas. Perguntou sobre as paredes e os cachorros (aquilo não havia sido explicado), e seu irmão respondeu-lhe que ele e sua mãe haviam pintado durante o período que ela estava viajando, mas que chegou tão cansada na noite anterior que nem mesmo havia reparado que a cor da sala mudara, e que os cachorros estavam obviamente no canil.

 Ao desligar o telefone ouviu um dos policias dizer que estavam evacuando o prédio para a policia federal trabalhar sem interrupções, pois como se tratava de um narcotraficante internacional, certamente havia dedos dos mexicanos envolvidos e não raro todo o edifício seria alvo de prováveis atentados nos dias a vir. Despediu-se de sua chefe, ainda em prantos e voltou para casa. Por garantia jogou fora também o seu aparelho celular (na baía de Guanabara, pois em lixeiras ele poderia ser facilmente encontrado) e comprou um novo. Ao chegar em casa, achou mais seguro também entrar pelo muro dos fundos. Aquela vizinha gorda ainda estava sob suspeita. Ela seria a próxima.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

A Flâneur, Julianna Merat, José Bechara e Gaston Bachelard Num Quarto de Hospital.






Dentre as muitas coisas da vida que não entendo e creio não ser por falta de vida vivida, uma delas é a certeza. Não entendo de que serve tê-la ou contestá-la, não entendo a valia desta propriedade imaterial.



A última frase que a charmosa mulher de olhos piedosos disse foi algo sobre as sequelas. Ao que parecia, eu não recuperaria parte de meu paladar responsável por identificar o doce. Pensei comigo que era uma troca muito justa, ja que meu corpo continuaria a decodificar serotonina.







Quando ela saiu, todos os presentes (meus pais e irmãos) tentaram me alegrar dizendo que ainda assim era apenas uma hipótese. Meu cérebro mal os acompanhava. Imaginei que eu deveria ser uma pessoa extremamente desagradável, além de alcoólatra e fumante compulsiva, pois enquanto todos a minha volta transbordavam amor e palavras de incentivo eu apenas sentia uma profunda irritação (que apenas meu irmão percebeu e o fez calar-se imediatamente - isso não havia mudado, ele ainda me conhecia fundo), e uma vontade quase incontrolável de cigarros e cerveja. O gosto de ambos me fez cócegas na garganta, e as cócegas me fizeram pensar então que talvez fosse possível acordar de um coma e ainda ser a mesma pessoa. Ou algo próximo disso.






Mas haviam questões mais importantes em jogo ali, como o fato de eu não conseguir diferenciar idiomas, o que fazia com que a comunicação fosse quase impossível, já que eu misturava várias línguas na construção de uma frase. Ou a comicidade imersa em não saber distiguir o que era real e o que era minha mente incontrolável. Eram frequentes frases do tipo "isso nunca aconteceu" ou "fulano eh um personagem", ou ainda "você nunca esteve em tal lugar". Cheguei ao absurdo de ouvir: "você não pode ter uma magnum embaixo do banco do maverick simplesmente porque você não tem um maverick. Nem uma magnum, que eu saiba". Mas eu me lembrava dela estar la. A voz grave e preocupada de meu pai me trouxe de volta de minhas divagações. Ele dizia que iriam dar uma volta, pois estava na cara que eu queria ficar um pouco sozinha. De brincadeira, pedi que me trouxesse um maço de lucky strikes e cerveja, ao que ele perguntou: qual? E eu como que por instinto respondi: dos vermelhos..., e uma heineken. Ele sorriu um sorriso iluminado, como um professor ao ouvir uma resposta brilhante de seu pupilo. Vi que havia algo de mim aqui ainda. Segundos depois ele rosnou para mim algo sobre "vergonha na cara e respeito a vida". Recebi um beijo de cada um, e enfim me deixaram.






Tive medo de minha própria companhia. Agora eu estava sozinha com minhas memórias, ou o que me restara de seus retalhos.






(em construção)


Também não entendo memórias, saudades e amor. Mas isso já são outros 500 ininteligíveis, ainda mais pra quem apenas acordou de um coma.