terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

O Dia Em Que Amei O Poeta - II

Despretensiosa. Essa palavra descrevia com alguma precisão (talvez entre o relógio analógico e a clepsidra) como ela acordara naquele dia. Os últimos dias haviam sido por demais confusos, e em certa feita perdeu-se na ordem cronológica dos fatos e não só isso. Começou a confundir também suas memórias. Depois de tantos anos exilada em seu salão de espelhos, era difícil distinguir a realidade das fantasias. Talvez por seus devaneios serem tão mais interessantes e sua realidade proporcionalmente entediante. Porém essa questão nunca havia sido um problema para ela, já que inventadas ou não, suas memórias exerciam seus papéis com excelência: a permitiam sentimentos. Nunca havia sido um problema a origem deles. Até agora. Uma enorme saudade a corroia o peito, apertava-lhe as entranhas. Ela buscava em seus arquivos mentais alguma dor parecida com aquela. Com aquele câncer. Nada. Buscava então a origem daquele sentimento. Encontrou uma cena. O calçadão da praia de Icaraí, uma tempestade se iniciando. Seu vestido marfim de flores rosa-chá encharcado, seu cabelo chicoteando contra seus lábios e bochechas. Risadas. Sua amiga ruiva recitando-lhe Libélula Rubra com os cabelos também esvoaçantes, porém seca. Salpicos frescos de água do mar em seu rosto, um vulto ruivo ao longe, também entre risadas. Pimenta. Sua mão em um rosto. Um toque quente em seu colo. Aquele rosto, o poeta, sua barba ruiva por fazer, suas clavículas. O andar cadenciado, o paletó e o chapéu. Suas guias pendendo de seu pescoço. Lembrou de um beijo que escorreu por sua boca, pescoço e seios. Viu seu vestido amassado no chão, uma mão cheia de anéis percorrendo cuidadosamente sua cintura, barriga, quadris. Um arrepio seguiu essa lembrança. A dor fez piorar. Chegou à origem da dela. Saudades do poeta. Então surgiu a dúvida. Como tanta dor, tanto caos, se nada daquilo era real? Ela estava certa de que aquela memória ela havia criado. Se lembra de ter esquadrinhado cada canto de sua arquitetura, atado cada ponta dos acontecimentos. Mas o toque era tão real. O cheiro, ela se lembrava do cheiro. Se lembrava da urgência daquele toque, da vontade por aquele gosto. Aquilo tudo não poderia ser fantasia. Porém não havia nenhum indício, nenhuma prova de que ela havia vivido aquelas sensações. Se era de fato amor, seria mesmo possível amar uma memória plantada por ela própria? E sentir falta de algo que não foi vivido? E amar alguém, amar o toque de um fantasma? Então, ainda com toda essa tempestade rugindo dentro dela, saiu, despretensiosa, porta afora. Também, quais pretensões são possíveis em uma segunda-feira? De forma inconsciente, aportou em um bar de frente para um mar. Havia certo tumulto ali. Pessoas lindas, todas sorriam para ela um sorriso sincero, um sorriso com o olhar. Era uma espécie de boas vindas silencioso. Dirigiu-se ao balcão, sentou-se. Um ponto privilegiado para admirar aquela bela confusão, ela pensou. Avistou dois bons amigos, mas estavam tão bem integrados aquele caos, e tão felizes por fazer parte dele e tão lindos em meio a tudo aquilo, que teve medo de chamá-los e então mudar tão belo quadro. De repente entre risadas, um homem se aproxima. Andar cadenciado, a elegância conhecida. Cabelos ruivos e bem cortados, bigodes de cantor de rádio. Trazia no pescoço guias de seus Guias, escapulários do santo padroeiro, correntinha que a vó deu de presente aos 7 anos e um crucifixo que ganhou de um franciscano com quem cruzou há longos anos. Nos pulsos e dedos mais amuletos. Paletó bem cortado, camisa de gola V. Beleza de pirata. Percebeu algum dejavú nisso tudo, mas estava excitada demais com o momento para determinar onde ele jazia. O poeta parou diante dela, tomou sua mão, beijou-a de forma terna e tesa. O cheiro, o toque, o beijo, a barba, a declarações trocadas, a urgência. O dejavú. Tudo em um turbilhão envolveu-a. Envolveu o ambiente. Ela olhou a volta, procurando desesperadamente por qualquer sinal de que aquilo era real. Pavor. Como determinar a realidade? Como não se perder em um sonho? Como saber de que lado do espelho ela se encontrava? Em meio a todas aquelas perguntas uma voz grave e rouca irrompeu seus devaneios.

_ Você.Julianna Merat! Estava ansioso por lhe ver chegar. Ansioso por nossa conversa. Acabou que depois de todas as mensagens trocadas, agora também acompanho seu trabalho de longe.

_ Nossa. Paulo. É um prazer conhecê-lo, finalmente. Estranho como todas essas mídias sociais confundem a realidade, não é? Também estava ansiosa por encontrá-lo, por nossa noite...


_ Sabes que todo poeta necessita de uma cronista ao lado?


_ Não, nunca ouvi nada parecido. E por qual motivo?


_ Para que este possa destilar o amor e a paixão de forma coerente. Sabe como é...Poetas...


_ Pois talvez então por esse motivo eu não goste de qualquer poeta.


_ Então eu seria todos os poetas do mundo para você.


_Você já contem todos os poetas do mundo... Sabes q toda cronista precisa de um poeta ao lado?


_ Não, por qual motivo?

_ Para ensinar-lhe a falta de vergonhas...







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