sábado, 19 de agosto de 2017

Pensava na estupidez de escolher uma lingerie de renda maravilhosamente desconfortável, apenas para se despir e passar as próximas horas estática, reclamando mentalmente que seu retrato acabaria com as marcas da renda estampadas em seus quadris.

Pensava na estupidez de ter meticulosamente deliberado acerca da lingerie, da combinação de texturas entre a fina renda de seu soutien e a rudeza do linho cru de seu vestido.

Pensava na estupidez de se envolver em rituais para se apresentar a um homem que mal conhecia, cujo interesse se limitava na observação dos matizes das veias sob a sua pele, do jogo da luz e da sombra nos côncavos e convexos do seu corpo, na plasticidade da sua casca.


Enquanto catalogava cada decisão estúpida em seus arquivos cerebrais, chegou ao hall do prédio estéril que guardava o estúdio do pintor. No momento em que leu o anúncio, solicitando uma voluntária para posar por 4 horas, pareceu uma ótima ideia: eu vou ficar nua em um estúdio de pintura de um potencialmente interessante espécime masculino, o que pode dar errado, certo? Certo. Mas agora estava ali, com a calcinha meticulosamente escolhida. Renda. E o soutien também. Desperdiçar 3 horas de banho, óleos, perfume, carmim e lábios delineados? Não era uma opção minimamente viável. Perguntava-se por onde andava aquele tesão que sentia por experimentações vazias de significados filosóficos, aquele frio na barriga que intumescia os mamilos e arrepiava os pelos das coxas e enrubescia as bochechas. Perdida (invariavelmente) em seus devaneios, encontrou o que procurava quando a porta do estúdio se abriu. O tal pintor em nada se parecia com as fotos que havia visto. Na verdade,
agora as fotos que vira dele pareciam caricaturas de mal gosto. Alto, o suficiente para ter de elevar os olhos, mas sem que seu pescoço doesse. Magro, mas notava-se músculos vigorosos cobertos pela malha velha de uma camiseta do John Paul Jones. Olhos atentos, sagazes, despudoradamente sagazes, boca macia (ela se deteve por um segundo a mais em seus lábios -macios, ao que responderam com um sorriso-de-canto-de-boca pornográfico) contornada pela barba cheia e bem aparada. Somente agora reparava que por sobre os olhos sagazes vestia óculos, e neles via o reflexo de uma mulher altamente desejável, curvas generosas sem nenhum compromisso com a perfeição, um vestido de linho cru que dava aos observadores um vislumbre de renda a contornar um seio, umas ancas largas, uma cintura que convidava uma mão a um descanso. E a um passeio.

O pintor abriu um sorriso sincero, convidou-a a entrar, ofereceu um café, um baseado, um whisky. Ela aceitou os dois primeiros, respirou fundo de olhos fechados por milissegundos e pensou "sim". Passado o relaxamento subsequente ao THC agindo em seu sistema nervoso, sorriu. O pintor explicava calmamente como seriam as próximas horas, que ela poderia pausar a sessão sempre que necessário, que não havia pressa e seu tempo seria respeitado. Nada, nada de muito relevante além daquela voz de trovão rouco, baixa, grave, melodiosa. Aquela voz sim, merecia toda a atenção que seu cérebro pudesse dar. Ele ainda falava enquanto organizava seu cavalete e tintas. Ela notou suas mãos. Dedos compridos, duas tatuagens ininteligíveis, mãos enormes. Assinalou mentalmente que elas caberiam em sua cintura, e que seus seios caberiam nelas.
Ele disse qualquer coisa sobre as formas femininas e sua poesia, e lançou um olhar as suas pernas (agora cruzadas). Não era um olhar de fome, não era o olhar sacana que ele dirigira aos seus olhos. Não, era veneração. Era adoração pela forma, pela reação da pele à luz da manhã que banhava a sala do estúdio, refratada nos salpicos loiros dos seus pelinhos. Ela via a poesia da qual o pintor lhe falara. Via ali, naqueles olhos despudorados que agora a devoravam como uma boca faminta, poesia de carne e pele. Sentiu-se tomada de beleza e comoção. Seus cílios agora batiam como asas de uma borboleta preguiçosa, seu sangue pulsava quente, caudaloso, seu vestido se tornara um véu, o véu que embala em frisson a antecipação da visão. Ela lembrou-se de uma fala, em uma revista em quadrinhos: - he was savoring the meal to come. Percebeu que ele respirou para se recompor daquela epifania compartilhada, reuniu toda a gentileza cabida naquela voz de homem e perguntou aquilo que o momento passado já havia respondido: - você está pronta?

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